22 outubro 2007

Quando regularidades se transformam em regras? A noção prática de gênero pode ajudar a descobrir.


Muito mais do que a regularidade dos trilhos (Lionel Walden, The Docks At Cardiff, 1896)

Após o primeiro ciclo da Jornada de Estudos “Olhares cruzados sobre as apostas contemporâneas do jornalismo”, em 1° de junho passado, uma análise comparativa mais apurada entre os conceitos de “paradigma jornalístico” e “formação discursiva jornalística” nos revelou como a noção prática de gênero jornalístico tem potencial para o exame da convivência e limites entre regularidades e regras. Noções vizinhas, “paradigma jornalístico” [PJ] (Charron et de Bonville, 1996, através da noção de « paradigme » de Khun, 1983)* e “formação discursiva jornalística” [FDJ] (Ringoot e Utard, 2005, através da noção de « formation discursive » de Foucault, 1984)** guardam uma incompatibilidade central: o limite entre regularidade e regra - semântica, de procedimento ou normativa. Enquanto o PJ defende que as regras, de várias ordens, compõem um “sistema normativo”, a FDJ acredita , acima de tudo, em regularidades.

Os gêneros jornalísticos são considerados como regras de produção discursiva para o PJ, enquanto que, para a FDJ, o gênero é considerado como manifestação provisória de um processo. Quando se entende o gênero jornalístico como condensado de prescrições implícitas, ou seja, uma aplicação do que se chama “dispositivo cognitivo coletivo”, pressupõe-se que as regularidades discursivas se “condensaram” em alguns tipos de regras. Afirmar que o gênero jornalístico é manifestação provisória, é, por outro lado, compreender que, embora as normas profissionais tenham sido racionalizadas, essas normas são, sempre, atualizadas, móveis e dinâmicas. Está claro que há uma diferença entre os níveis de estabilidade, mas também, acreditamos, há um problema no sentido implícito da normatividade advindo da expressão “sistema normativo” para o conceito de PJ.

Em relação a postulados, esquemas de interpretação, valores e modelos exemplares, que compõem o paradigma jornalístico estão conjuntos de regras discursivas, que podem ser de edição e de redação. As regras, como analisam os autores Charron e de Bonville (por referências como Susan Shimanoff, Olivier Favereau, Jean De Munck et Marie Verhoeven), podem ser semânticas, de procedimento ou normativas e ainda indicar comportamento obrigatório, preferível ou proibido. Em que sentido pode-se dizer que a pirâmide invertida, por exemplo, inclui regras semânticas, de procedimento e normativas? Ou, que a propria pirâmide invertida é uma regra? É senso comum que os chamados gêneros informativos seriam regidos por essa, dentre outras regras. Entretanto, acreditamos que uma comparação entre nota, notícia e reportagem, por exemplo, pode mostrar o quanto tal regra é prescritível para cada tipo discursivo.

A noção de regra não é, de nenhum modo, descartada do conceito de formação discursiva, mas está como condição de existência (coexistência, manutenção, modificação, desaparecimento) numa disposição de objetos, tipos de enunciação, conceitos e estratégias. Ou seja, aquilo que marca a regularidade de determinadas relações entre estes elementos seriam regras de formação. Por exemplo, nos parece que em jornalismo pode-se dizer que os tipos de enunciações mais freqüentes do gênero notícia coexistem, em geral, com acontecimentos factuais, enquanto a reportagem tem como objeto principal situações (acontecimentos em processo).

Há uma certa similitude entre essa compreensão e o que diz a teoria do PJ. Pois, para o PJ, o sistema tipologico de referentes**** (que está numa das duas classes principais de elementos do paradigma) segue uma ou outra configuração, a depender do gênero discursivo: “Considéré du point de vue du style, le concept de genre journalistique rend compte de l'institutionnalisation de certains procédés stylistiques et de leur mise au service de visées discursives spécifiques. Ainsi, le genre nouvelle serait le fruit de la rencontre de la visée informative avec une certaine structure textuelle (pyramide inversée), certains contenus ou lieux communs (topiques journalistiques), certaines prescriptions lexicales (dénotation et non connotation), etc. (...) Les règles constitutives de genres s'y appliquent universellement et rigoureusement ; la frontière entre les différents genres est systématiquement respectée, et es écarts, réprimés. (...)" (CHARRON e de BONVILLE, 2004, 206-207)

A diferença é que, se para o PJ, estas são regras constitutivas dos gêneros e, mais ainda, são regras universais e rigorosas, para a FDJ, algumas das chamadas “regras” que combinam objeto e tipo de enunciação, por exemplo, são consideradas estratégias:
“(...) Si la production est régie par différents concepts, tels que l'objectivité, le sensacionalisme, l'intimisme ou l'utilitarisme ces derniers sont aussi des stratégies combinant des types d'informations et des types d'énonciation. Le niveau préconceptuel dont parle Michel Foucault pourrait résider dans la loi de proximité plus ou moins formalisée par les professionnels : proximité chronologique, géographique et sociétale. Mais là encore, il y a recoupement avec la stratégie. L'actualité journalistique organise un présent à géométrie variable en fonction de la périodicité de la production ; à tel point que le critère temporel identifie et diversifie l'information : information brûlante, chaude ou froide, information périodique ou continue. (...) » (Ringoot et Utard, 2005, 42)

Enquanto os jornais impressos produzem uma notícia, uma entrevista e/ou uma análise sobre um dia de mobilização de greves por toda a França, os ciberjornais podem produzir, ao longo do dia, panoramas, álbuns fotográficos e/ou chats. Nesse caso, a característica periodicidade, modifica a propria relação entre objetos e tipos de enunciação, de forma que contribui para a configuração de outros tipos discursivos. Mais atentamente, a comparação entre mesmo “gênero” em diferentes dispositivos (mídias ou suportes, como se prefira) não nos indicaria que existem elementos, lá nas regras de formação, responsáveis por determinada relação entre objeto e tipo de enunciação, por exemplo?

Quando e por quanto tempo pode-se dizer que as regularidades entre objetos, tipos de enunciações, conceitos e estratégias se transformam em regras? E, ainda, quais seriam normativas, da ordem do dever-ser? Muitas das “regras” parecem estar no nível do preferível, mais do que do obrigatório. É possível ser mais enfático quando se trata de tipos de enunciação, principalmente em se levando em conta as novidades advindas com o ciberjornalismo.


CONCEITOS
* « (...) Un paradigme journalistique peut être défini, selon nous, comme « un système normatif engendré par une pratique fondée sur l'exemple et l'imitation, constitué de postulats, de schémas d'interprétation, de valeurs et de modèles exemplaires auxquels s'identifient et se réfèrent les membres d'une communauté journalistique dans un cadre spatio-temporel donné, qui soudent l'appartenance à la communauté et servent à légitimer la pratique » (...) » (Charron et de Bonville, 2004, 36)
« Dans son versant théorique, le concept comporte deux classes principales d'éléments : un savoir commun ou savoir encyclopédique spécifique aux journalistes et un ensemble de règles de production discursive. (...) » (Charron et de Bonville, 2004, 40)
**« On définira donc la formation discursive journalistique comme un foyer de tension entre ordre et dispersion. Ordre et dispersion des informations, des énonciations et des stratégies. Cette notion de dispersion permet de penser l'hétéronomie du journalisme comme constitutive et intrinsèque. (...) Si l'on reconnaît un ordre de discours journalistique, on reconnaît aussi une dispersion extra-discursive. (...) » (Ringoot et Utard, 2005, 42-43)
***« Dans le cas où on pourrait décrire, entre un certain nombre d'énoncés, un pareil système de dispersion, dans le cas où entre les objets, les types d'énonciation, les concepts, les choix thématiques, on pourrait définir une régularité (un ordre, des corrélations, des positions et des fonctionnements, des transformations), on dira, par convention, qu'on a affaire à une formation discursive, - (...) » (Foucault, 1969, 53)

Referências:

BRIN, Colette, CHARRON, Jean et de BONVILLE, Jean (dir.). Nature et transformation du journalisme. Théorie et recherches empiriques. Québec, Les Presses de l’Université Laval, 2004.

FOUCAULT, M. (1969) L'arqueologie du savoir, Paris: Gallimard, 1969.

RINGOOT R. e UTARD J.M. Le journalisme en invention. Nouvelles pratiques, nouveaux acteurs, Rennes, PUR, coll. Res Publica, 2005.

Site dedicado ao estudo dos gêneros jornalísticos. Criado durante nossa tese de doutorado, 2005. Esse novo layout abre um novo ciclo de estudo, pesquisa, descobertas sobre esse tema tão caro à prática jornalística e ao conhecimento sobre o jornalismo.

  © Blogger templates Brooklyn by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP