05 setembro 2010

Porque não existe gênero jornalístico interpretativo


Este é o título do nosso artigo a ser apresentado no próximo encontro da SBPJor em novembro, São Luis Maranhão. Um tanto provocador, o título pressupõe nossa posição quanto ao que se tem chamado de "gênero interpretativo" e anuncia que explicaremos os motivos desta crença acadêmica atual. São dois motivos principais: 1) "interpretação" é ainda tratada como termo e não como conceito; e 2) o que existe no chamado "gênero interpretativo" é um maior nivel de interpretação, principalmente pelo estatuto do jornalista-repórter e porque lida com maior quantidade de objetos de desacordo.

Vamos desenvolver! Qual a definição clássica de "jornalismo interpretativo"? Em que autores pensa quando vem o tema? Cremilda Medina. Luiz Beltrão. Mário Erbolato. Ok. E quais termos vêm diretamente associados na tentativa de defini-lo? "Relato aprofundado". "Contextualização" ou "Aprofundamento do contexto". "Humanização do fato jornalístico". Ok. E o que é um relato aprofundado? O que é "aprofundar"? É igual a contextualizar? O que é contextualizar? Vem de contexto? Contexto atual? Atual de atualidade (como trabalha Carlos Eduardo Franciscato)? Qual a relação entre humanização e interpretação?

Muitos termos, poucos conceitos nos estudos de jornalismo...comumente. Todos sabemos que não se trabalha com um conceito de interpretação (nem mesmo com a Teoria da Interpretação) para uma compreensão do que se tem chamado de "jornalismo interpretativo" ou "gênero interpretativo". É uma adjetivação do fazer-jornalístico. Como tal, deveria dizer que qualidade, que estado, que modo de ser imprimiria a este fazer. Deveria explicar o que muda do fazer jornalístico informativo para o interpretativo. Não se pode explicar apenas pela linguagem. Melhor, linguagem também precisa ser tratada na relação entre discurso e realidade. Para o gênero, o adjetivo interpretativo parece recair sobre a função/finalidade: interpretar a realidade atual.

Como vimos fazendo o o movimento de não focar na função, mas sim trabalhar com as condições extralinguísticas juntamente com as linguísticas, partimos dos atos linguísticos realizados nas composições discursivas realizadas nos veículos jornalísticos. Portanto, defendemos que na realização de qualquer ato linguístico (assertivo, opinativo, expressivo, diretivo) existe gesto de interpretação . As proposições formadas de acordo com a compossibilidade dos sentidos são resultado de interpretação. No caso do fazer jornalístico, trata-se de interpretação da realidade atual. As proposições se constituem em compromissos assumidos, portanto, de responsabilidade de sujeitos, sejam estes indivíduos e/ou organizações. A partir do momento em que se relaciona mais de um objeto de realidade, está-se interpretando. Talvez aquilo que se chama de “aprofundamento” ou “aprofun-damento de contexto” em estudos de jornalismo, possa ser compreendido como níveis de interpretação.

A "equação" seria a seguinte: quanto mais o objeto de realidade tratado no fazer jornalístico é um objeto de acordo, menos se percebe o gesto da interpretação; ao passo que, quanto mais objetos de desacordo e relações explícitas entre estes objetos de acordo e desacordo são realizadas, mais fica claro o gesto da interpretação. O nível da interpretação parece aumentar em função das conexões operadas pelo fazer jornalístico. Objetos de acordo são aqueles com parâmetros intersubjetivos de verificação, comprovação, compreensão. Objetos de desacordo não têm parâmetros calcados no saber social (veja o quadro atualizado do objetos de acordo mais frequentes no discurso jornalístico).

Como defende a Pragmática, os parâmetros de verdade são aqueles da intersubjetividade, cujo equivalente, para a AD, seria o interdiscurso. Intersubjetividade está associada a interconhecimento, e o interconhecimento está ligado a compreensão. É a circularidade que envolve compreensão e interpretação da experiência existencial humana, do círculo hermenêutico:

[...] O ato de interpretar então é a operação dos significados dados na com-preensão, de modo que aquilo que se interpreta já é, de antemão, anteci-pado pelas possibilidades inscritas na compreensão. O interpretar só é possível, aliás, graças a essa antecipação na qual a compreensão disponibiliza os sentidos construídos pela experiência das gerações passadas. [...] (GUERRA, 2003, p. 168) (grifo nosso)

Os tipos de objetos de realidade e as conexões entre estes objetos de realidade são responsáveis pelas diferenças de nível de interpretação em diferentes composições, como notícia e reportagem. Quanto mais objetos de desacordo, mais facilmente se constituem opinativos. Quanto mais conexões entre diferentes objetos de realidade, maior o nível de interpretação. Quanto maior o nível de interpretação, mais contextualizado ou “aprofundado” é um assunto.

Os atos linguísticos nos chamados “gêneros informativos” constituem, assim, na origem, interpretação. Sem a conexão, sem relacionar os diversos eventos, fatos, acontecimentos, enfim, objetos de realidade, não há fazer jornalístico. Não há como se dimensionar uma ocorrência como notícia (qualidade de noticiabilidade) sem a operar seleções e conexões, ainda que apareçam na composição discursiva por sucessão. O fazer, em termos de apuração, segue a mesma lógica. O que explica o fato de muitos jornalistas das redações diárias não diferenciarem notícia de reportagem (entrevistas no final do livro).

Portanto, a diferença de nível não equivale a diferença de ação. Tem-se interpretação tanto em notícia como em reportagem, perfil ou cronologia. Se na notícia é comum a sucessão para marcar causa, no perfil é comum a descrição do personagem. Enquanto na primeira composição parece não haver interpretação, na segunda, a interpretação é explícita. Motivo: a descrição trabalha com objetos de desacordo, como comportamento social, estado psicológico, gestos constatados, obser-vados, “sentidos” pelos indivíduos-jornalistas.

Chegando à finalidade/função, depois de investigar o conceito de interpretação (no artigo), sugerimos: para se afirmar que existe gênero interpretativo é preciso que a interpretação constitua função principal de dada composição discursiva. Com isso, devemos provar que cada composição discursiva tem funções que integram parte de um sistema em funcionamento do campo jornalístico. Devemos ainda compreender a relação entre função de composição discursiva com função de instituição social e como essa função de interpretar se relaciona com os atos lingüísticos assertivos e opinativos. Por fim, devemos desenvolver uma definição de interpretação que explique a dialética do evento e da significação.

Ao final e ao cabo, sabemos que só como conceitos e proposições se faz teoria. Gêneros Jornalísticos é, mais do que tudo, teoria do jornalismo.




Referências



BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Interpretativo. São Paulo: Sulina, 1976.
COSTA, L.; LUCHT, J. Gênero Interpretativo. In: MARQUES DE MELO, J.; ASSIS, F. Gêneros Jor-nalísticos no Brasil. São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo, 2010, p. 109-123.
CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.
ERBOLATO, Mário. Técnicas de codificação em Jornalismo. Redação, Edição e Captação no Jornal Diário. São Paulo: Ática, 2002.
FOUCAULT, Michel. . L'arqueologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
GUERRA, Josenildo. O percurso da interpretação na produção da notícia. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008.
MARQUES DE MELO, José; ASSIS, Francisco de. Gêneros Jornalísticos no Brasil. São Paulo: Uni-versidade Metodista de São Paulo, 2010.
MARQUES DE MELO, José. A Opinião no Jornalismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1985.
GASPAR, Malu; ROGAR, Silvia; SEGALLA, Vinícius. O suspeito número 1. Revista Veja. Edição de 7 de julho de 2010, p. 80.
MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente. Narrativa e Cotidiano. São Paulo: Summus Editorial, 2003.
ORLANDI, E. Intepretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. São Paulo: Vozes, 1996.
PASSWORD: ENGLISH DICTIONARY FOR SPEAKERS OF PORTUGUESE. Tradução e edição de John Parker e Monica Stahel da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
SEARLE, John. Expressão e Significado. Estudos da teoria dos atos de fala. Trad. Ana Cecília G.A. De Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
SEIXAS, Lia. Redefinindo os gêneros jornalísticos. Proposta de novos critérios de classificação. Portugal: LabCom Books, Coleção Estudos de Comunicação, 2009. Disponível em: http://www.livroslabcom.ubi.pt/sinopse/seixas-classificacao-2009.html.
SEIXAS, Lia. Gêneros Jornalísticos: partindo do discurso para chegar à finalidade. XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba, setembro de 2009. Disponível em: http://www.generosjornalisticos.com/p/artigos.html. Acesso em julho de 2010.

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