24 outubro 2006

Gênero também é poder

Desde que o professor Marcos Palácios publicou no blog do Grupo de Jornalismo Online (GJol) parte da entrevista que o ex-diretor de infografia do ElMundo digital, Alberto Cairo, deu ao JornalismoPortoNet, a questão de a infografia ser ou não ser um gênero jornalístico me importuna positivamente. Me parece um excelente exemplo para investigar os motivos pelos quais se deva considerar tal ou qual unidade discursiva produzida pela indústria jornalística como um gênero.


Vejamos. Está em discussão a natureza do objeto noticiável, já que o Alberto Cairo considera a infografia um gênero adequado para “transmitir os dados frios, os dados duros”. Está em discussão o sub-campo do qual faz parte, pois fala-se em “jornalismo visual” e “jornalismo infográfico”. E está em discussão a autonomia do infográfico (nomenclatura discutida, ver complementares abaixo) enquanto unidade discursiva independente e editoria, pois, em certo momento da entrevista, ele diz:

“Formalmente a infografia não está aceite como um género jornalístico, mas estou convencido de que o é. A infografia é a aplicação das regras do desenho gráfico para contar histórias. Assim, se se contam histórias jornalísticas pelo meio do desenho gráfico, isso é um género jornalístico, sem dúvida.”


Natureza do objeto


A importância da natureza do objeto a noticiar nos parece definitiva. Se gesta na pauta com afirmações como: “Isso gera uma reportagem especial” ou “Esse fato gera uma crônica (espanhola)”. Ora, é o tipo de evento - acontecimento ou fato, seus valores-notícia - o primeiro motivo na configuração de um ‘formato’.

Embora isso não seja novidade, tem pouquíssimo destaque nas releituras das teorias classificatórias de gênero. Não só Luiz Beltrão, como o professor José Marques de Melo (que está preparando um novo livro sobre gêneros jornalísticos, para 2008), já haviam apontado a ‘natureza do tema’ e a ‘natureza do acontecimento em relação à expressão jornalística e à apreensão pela coletividade’ como critérios de definição dos gêneros do campo jornalístico.

Hoje, esse elemento não aparece nas novas classificações.Nos estudos do jornalismo digital, entrentanto, um dos estudiosos pioneiros sobre a redação jornalística na internet, Ramón Salaverría, chama a atenção para a relação entre o tipo de conteúdo e a estrutura hipertextual.

Sem a obrigação em preencher um espaço definindo, o jornalismo digital tem mais liberdade para decidir o gênero a produzir. Concordamos, com perdão do trocadilho, em gênero, número e grau com o professor Alberto Cairo (Universidade da Carolina do Norte- EUA):

“(...) No caso do acidente de metro que houve em Valência onde morreram 42 pessoas, a infografia não permite contar como as famílias das vítimas experimentaram a tragédia. Por outro lado, a infografia é muito melhor para explicar por que é que o comboio descarrilou, por que chocou, onde chocou, quanta gente morreu, quanta gente está viva. A infografia é muito melhor para transmitir os dados frios, os dados duros.”

Por trás, a premissa de que uma unidade discursiva, além da função maior de informar ou avaliar, tem funções mais específicas da ordem da argumentação. Sim, da argumentação embutida na interpretação da realidade. No caso da infografia digital, mais do que ilustrar, o gráfico informativo representa o corrido para explicar o porquê, uma daquelas cinco importantes questões do nosso famigerado lead.


Sub-campo?


Ao se falar em “jornalismo visual” ou “jornalismo infográfico”, está-se criando um sub-campo como “jornalismo político” e “jornalismo impresso”. Só que cada um destes adjetivos refere-se a um elemento diverso. ‘Visual’ e ‘infográfico’ referem-se a linguagem. ‘Político’ refere-se a conteúdo e domínio do saber (editoria), enquanto ‘impresso’ refere-se a mídia. É importante lembrar que existem ainda os adjetivos de função, como informativo e opinativo. São estes que têm operado a divisão entre gêneros jornalísticos. Qual deve ser o elemento para definir um sub-campo?

Para esta resposta, acreditamos que o caminho está na noção de ‘campo’. É investigar os elementos-chave como ‘habitus’. O que caracteriza o domínio do saber não pode ser apenas o conteúdo. A linguagem também não definiria a atividade jornalística, mas as unidades discursivas desta atividade. A mídia é da ordem do dispositivo, elemento determinante na configuração de técnicas de redação e edição, mas apenas condicionante na configuração de técnicas de apuração.

No campo jornalístico, o conteúdo perpassa as linguagens, que, por sua vez, atravessam os conteúdos, mas são condicionadas às mídias. As funções, entretanto, perpassam conteúdo, linguagem e mídia. As ações de informar, avaliar, divertir, provocar, opinar implicam lugares, estatutos, autoridades, autonomia e, enfim, poder.


Gênero é poder


Não é pouca a informação de que o ElMundo digital foi o primeiro veículo a ter um departamento de infografia, funcionando como uma editoria, cuja produção é autônoma em relação à produção de matérias e reportagens. Com isso, vê-se que infografias podem ser produzidas independentemente da matéria ou da reportagem. Não mais como nas redações da mídia impressa, em que a editoria de arte, formata, com o editor (hoje, com o repórter também), a infografia para aquela matéria de duas páginas.

Reclamar o estatuto de gênero é reclamar autonomia. Daí a afirmação de Alberto Cairo: “(...)A infografia é a aplicação das regras do desenho gráfico para contar histórias. (..)”. Ou seja, a partir do momento em que a infografia pode ser uma unidade discursiva autônoma e ‘contar uma história’, pode ser considerada um gênero. E, ainda mais, se tem um editoria independente, o que não ocorreu ainda nas redações impressas, além do fato de que, no Brasil, nenhuma redação do jornalismo digital trabalha com infográfia digital.

Eu ousaria dizer que se pode afirmar: a infografia digital alcançou status de gênero jornalístico.

Complementares:

Post do GJol, Jornalismo&Internet, com trechos da entrevista de Alberto Cairo.


Entrevista de Alberto Cairo em JornalismoPortoNet.


Site de Alberto Cairo, onde se pode ver suas infografias preferidas (exemplo da imagem acima).

Conheça o livro de Ramón Salaverría, "Redação Periodística en Internet", em que fala da relação conteúdo - estrutura hipertextual na página 106.

Conheça o artigo da professora Beatriz Ribas, estudiosa em infografia do Grupo de Jornalismo Online da Facom, fruto de sua dissertação de mestrado: " A infografia multimídia: um modelo narrativo para o webjornalismo". Na dissertação, a autora defende a infografia como um gênero jornalístico, mapeia a a área e discute a nomeclatura.

6 comentários:

daniela bertocchi 16:28  

Pelo meu turno, ousaria dizer que, da forma que tu colocas, é então uma espécie do gênero narrativo...

Beijos! ;)

Unknown 18:24  

Sim, Daniela, talvez...sabe que, para mim, o polêmico é o conceito de 'narrativa'.

Grande beijo.

daniela bertocchi 11:02  

Lia,
Na minha dissertação de mestrado produzi um capítulo só sobre o conceito de narrativa e outro dedicado ao conceito de narrativa jornalística, só pra depois pensar no digital. Ainda não terminei a dissertação (não vejo a hora de acabar!), mas tudo leva a crer que, tomando narrativa como "modo", o conceito não se altera para o digital. Alteram-se outros conceitos de narratologia (como o de "cooperação narrativa", para ficar num exemplo). Mas narrar ainda parece ser contar uma história que tenha aqueles momentos clássicos de começo, meio e fim (narratividade), ainda que não nesta ordem linear e ainda que esteja presente num texto opinativo, por exemplo. Mas percebo quando dizes que é polémico! E no jornalismo, tudo também parece se complexificar ainda mais...
O que acha?
Um beijo grande!

Unknown 13:51  

Olha, Daniela, percebo que o conceito de narrativa é tomado de forma inclusiva e geral, enquanto o de narração estaria mais próximo do 'modo', como diz.

Em geral, o 'modo discursivo', está dividido em narraçção, dissertação ou argumentação e descrição. Eu realmente acho, cada vez mais, que o texto jornalístico é argumentativo, mas sem ser o argumentativo explícito com conjunções conclusivas ou adversativas.

Acho q a retórica do jornalismo argumenta com uma frase depois da outra; ilustra, explica (usa dados como provas), compara (dois universos, dados estatísticos),... e entendo a notícia como uma 'tese' à qual o jornalista chega, depois de toda a apuração.

Pra mim, mesmo a notícia de fait-divers é 'argumentativa'. De alguma foram, como defendeu o Josenildo Guerra sobre o percurso interpretativo da notícia (tese).

Bem, por aí...

beijo.

Unknown 21:31  

Olá Márcio,

Encontrei mais rapidamente um texto que escreveu para o Observatório da Imprensa em setembro de 2003. Vou procurar o seu artigo no site.
Estou no processo de qualificação agora, mas gostaria, sim, de trocar mais idéias com você.

Grande abraço

André Deak 22:38  

Daniela, parabéns pela aprovação, antes de mais nada.
Conheci hoje seu blog e tenho grande interesse em trocas algumas idéias (e que me indique algumas fontes...)
Ainda mais porque trabalho como editor multimidia da Agência Brasil (www.agenciabrasil.gov.br). Estamos engatinhando ainda, mas somos ambiciosos...

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